O Presidente da República não teve ocasião de servir jantar a Nuno M., esta quinta-feira, no Restaurante Solidário, no Porto, quando vestiu a camisola de voluntário e chamou a atenção para a falta de Estratégia Nacional para a Integração dos Sem Abrigo, mas serviu o do casal que dorme a uns metros dele, numa barraca de cartão – para melhor se esconder do mundo e se livrar do vento.

Foge dos holofotes, este homem encorpado, encasacado, de barba espessa. É um dos vultos que se perpetuam nas ruas do Porto, noite após noite, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Como se estivessem presos à rua ou, pelo contrário, como se só estivessem livres na rua. E que, de repente, se cruzam com outros, ainda a aprender a viver na rua, como aquele casal.

“É um fenómeno dinâmico”, avisa Raquel Rebelo, coordenadora do Porto Escondido, o projecto móvel dos Médicos do Mundo. As noites nunca são iguais. Algumas pessoas acumulam fragilidades – desemprego, ruptura familiar, problemas relacionados com saúde mental, consumo de drogas ou álcool. E “basta que acumulem duas”, um problema de saúde mental e uma dependência, para parecer que estão presas à rua ou, pelo contrário, que só estão livres na rua.

Já foi menos difícil sair da rua. Os centros de alojamento de emergência estão lotados. Com o andar da crise, a Acção Social limitou a verba que permitia recorrer a quartos de pensão. O Instituto de Segurança Social garante que continua a atribuí-la. Apenas nas situações mais extremas, atestam diversas fontes ouvidas pelo PÚBLICO. E há quem fique à espera – na rua.

O Porto até foi pioneiro. O Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA) da cidade começou a formar-se há oito anos, ainda antes de ser aprovada a primeira Estratégia Nacional. E juntou 64 organizações formais e informais decididas a motivar pessoas que estão na rua, a ajudá-las a encontrar alternativas, a acompanhá-las até à inserção efectiva.

No início de 2009, quando a Estratégia Nacional arrancou, o diagnóstico social do Porto apontava para 2500 pessoas a pernoitar em espaço aberto, casas devolutas, barracas, arrumos, carros abandonados, varandas, centros de acolhimento temporário, quartos de pensão pagos pela Acção Social. Para que todos pudessem trabalhar em rede, de forma idêntica, o NPISA desenhou um circuito de articulação técnica e garantiu alguma formação. Foi criada uma plataforma de Triagem e Acompanhamento Social: um atendimento de primeira linha, assegurado, à vez, por técnicos de 12 organizações parceiras. O técnico de serviço devia ouvir a pessoa, traçar-lhe um pré-diagnóstico e encaminhá-la para um albergue ou uma pensão, conforme julgasse mais apropriado.

Naquela altura, podia acontecer não haver vaga no albergue, mas ia havendo verba na Acção Social. Até Abril de 2010, cerca de 1500 pessoas saíram das ruas. Algumas seguiram para os territórios de origem, com relatório social, técnico atribuído. Outras foram alojadas em albergues, comunidades de inserção, quartos de pensão ou quartos de casa. Agora, que falta verba, há que esperar mais tempo – na rua.

O casal que dorme ao pé de Nuno espera há mais de dois meses. “Fomos à Segurança Social. Mandaram-nos para a Cáritas”, conta a mulher, de 32 anos, que se identifica, mas prefere não ser identificada. Era lá que estava a funcionar a triagem. “A técnica disse que ele poderia ir para um albergue no Porto e que eu tinha de ir para um albergue longe. Quando a nossa vida melhorasse, aí, sim, poderíamos viver juntos.”

Indignados, queixaram-se à enfermeira Francisca Jesus e ao educador de pares Jorge Garcez, que por ali passam a fazer educação para a saúde, distribuição de preservativos, troca de seringas, diagnósticos de doenças sexualmente transmissíveis, referenciação, apoio social. A equipa de rua dos Médicos do Mundo indicou-lhes duas comunidades de inserção que aceitam casais: a CAS – Centro de Alojamento Social, da Santa Casa da Misericórdia do Porto, e o Centro Comunitário São Cirilo, criado pelos jesuítas. Não há vagas – nem numa, nem noutra. Ficaram a aguardar – na rua.

Esta quinta-feira, Marcelo Rebelo de Sousa usou a expressão “buraco”. A Estratégia Nacional para a Integração dos Sem-Abrigo 2009-2015 já terminou. “Há muitas instituições que estão à espera [de uma nova]. É uma necessidade”, declarou. O Ministério da Segurança Social informa que está a trabalhar na reedição da estratégia e que deverá apresentar um plano de acção “até ao final de Março”. “Eu espero que rapidamente seja possível ter uma resposta do governo português”, disse o Presidente.

Estratégia Nacional nunca teve financiamento próprio. Funcionou apenas com recursos disponibilizados pelos parceiros. Não há coordenação nacional desde meados de 2011. Os parceiros dos 15 NPISA do país nem sempre cumprem o acordado. O NPISA-Porto, por exemplo, não reúne desde Março de 2016, altura em que 39 organizações formalizaram a parceria e a coordenação saiu da equipa técnica para a direcção da Unidade de Desenvolvimento Social e de Programas do Centro Distrital da Segurança Social. O número de técnicos destacados para acompanhar os sem-abrigo foi diminuído. Há quem responda por mais de cem casos.

Equipas técnicas, como aquela dos Médicos do Mundo, e grupos de voluntários, como os da associação Saber Compreender, continuam a dobrar a noite a sinalizar os casos à Segurança Social, a garantir às pessoas que há uma alternativa, que outra vida é possível, e a tentar encontrar uma via para as ajudar a sair da rua (ver vídeo). Algumas vão sendo alojadas, apesar das dificuldades. Outras vão chegando à rua. Ainda há 100 a 150 a dormir ao relento e algumas centenas em barracas ou casas devolutas.

Há sítios inimagináveis. Na zona ocidental da cidade, perto de três bairros marcados pelo tráfico e pelo consumo, Christian Georgescu e Isaque Palmas, voluntários da Saber Compreender, acendem uma lanterna e seguem por um caminho estreito e escorregadio. Debaixo do viaduto, meia dúzia de homens dentro de tendas montadas entre desperdícios. Chamam-nos para a estrada, onde esperam, dentro de carros particulares, outros voluntários com cobertores, roupas quentes, alguma comida e muita vontade de falar.

O mais velho é um homem de longas barbas brancas. Augusto parece muito velho, mas só tem 57 anos e lixo entranhado na pele e nas unhas. “Era picheleiro. Vivia com os meus pais. Fiquei sem os meus pais, fiquei sem nada. Vim para aqui. Já paro aqui há 20 e tal anos. Vinha aqui fumar e tudo, mas viver é há quatro anos. Tem de ser.” Não preferia um albergue? “Não me dou com isso. Eu sou um bocado livre. Eu sou um bocado solitário. Gosto de conviver, mas gosto de ter os meus momentos a sós.”

Augusto não tem documentos. Não recebe qualquer apoio. A voluntária Dora Matos toma nota do seu nome, da sua data de nascimento, promete ajudá-lo. No dia seguinte já terá enviado um e-mail à equipa da Segurança Social. Volvido um dia, ter-lhe-ão respondido que Augusto tem de dirigir-se a uma equipa de rua. Augusto não o fará. E Dora Matos avisará os Médicos do Mundo, que se comprometerão a procurá-lo.

Há que distinguir casos de desabrigo temporário, pessoas que saem da rua na primeira oportunidade, como aquele casal que dorme numa barraca de cartão, de casos crónicos, persistentes, como Nuno ou Augusto. “Os sem-abrigo de muitos anos acabam por não encaixar em lado algum”, observa Raquel Rebelo.

“Os primeiros tempos de sem-abrigo são horríveis”, comenta Nuno. “Uma pessoa não faz ideia do que isto é.” Tem de descobrir que apoios existem, onde, quando. “Anda, anda, sente-se maçada dos pés. As filas das carrinhas incomodam, o andamento das pessoas incomoda, a pessoa sente-se isolada no meio da sociedade. Depois, com o tempo, habitua-se. Pelo menos comigo foi assim. Fui-me habituando…”

Sete anos passaram desde que o pai morreu e Nuno ficou na rua. “Não estou consecutivo. Estou num albergue, venho para a rua. Estou num quarto, venho para a rua. Não é fácil dar a volta à situação de sem-abrigo. Pelo menos para mim. Tenho um problema de psiquiatria. E uma situação de toxicodependência.”

Há muito que, diz Raquel Rebelo, se fala na necessidade de haver uma estrutura mais flexível do que os albergues. “A pessoa hoje era contactada pela equipa de rua e dizia: ‘Sim, aceito ir.’ Levávamos. Alguém abria a porta.” Não importava a hora, nem o efeito de estupefacientes ou de bebidas alcoólicas. Não ficaria inibida, se estivesse duas ou três noites sem aparecer. “Um dia ia. Ficava dois dias sem ir. Depois ia outra vez. Ia-se criando empatia. E a pessoa começava a acreditar. Quem está no fim de linha não acredita que há alternativa. E estar na rua é o expoente da liberdade. Voltar a entrar num processo de acompanhamento é voltar a estabelecer objectivos e, eventualmente, voltar a falhar. Na rua, já ninguém olha, ninguém critica.”

Nós tentamos identificar onde havia mais carências”, conta o vereador da Habitação e da Coesão Social da Câmara do Porto, Manuel Pizarro. O executivo aprovou em Julho de 2016 o Programa Porto de Abrigo – Estratégia Local de Integração de Pessoas em Situação de Sem Abrigo. “Tentamos fazer uma intervenção articulada com a Rede Social para fornecermos uma resposta adicional.” O centro de emergência – aprovado pela autarquia no Verão – só “no final de Março ou no início de Abril” deverá abrir as portas nas antigas instalações do Hospital Joaquim Urbano. Por que tarda? “Normas da contratação pública”, justifica.

A última vaga de frio serviu para fazer o teste. “Esteve a funcionar em condições precárias, com voluntários, mas cumpriu a missão”, afirma o vereador. Prepararam-se para receber 28 pessoas. Chegaram a acolher 44. “Se existir uma alternativa as pessoas até podem sair da rua. Não sairão, se não existir alternativa.”

Aquele será o passo entre a rua e os albergues ou as comunidades de inserção. Todas essas estruturas têm um prazo. E depois? “Há pessoas que nunca vão ficar autónomas pela via do trabalho e que estão a entupir essas estruturas”, lamenta Raquel Rebelo. “Pessoas com 55 ou 60 anos, com pouca ou nenhuma escolaridade, sem hábitos de trabalho, doentes. Quando é que vão ser autónomas? Nem pela via do trabalho, nem quando forem pensionistas.”

Há muito que, dentro do NPISA, se reclama alojamento de longa duração ou permanente. A resposta é diminuta. Há uns anos, a associação mutualista Benéfica Providente cedeu dois apartamentos, que acolhem cinco pessoas. Agora, a Santa Casa da Misericórdia do Porto cedeu outros dois, com lotação para oito. E seis casas, que estão a ser requalificadas e podem acomodar 12. A câmara, por sua vez, prometeu utilizar algumas casas para alojamento definitivo.

Visto do alpendre, da rua Alves da Veiga, onde Nuno se prepara para dormir, a cidade não faz o suficiente. “Há carrinhas de voluntários a distribuir alimentação, sim senhora. Agora, há um refeitório. Já está melhor qualquer coisita. Mas os alojamentos ainda não estão com as condições necessárias para dar o tipo de apoio que cada pessoa precisa. Não há especialização técnica para ver a situação de cada um, para ajudar a pôr a pessoa como deve ser.”

Não monta uma barraca de cartão para se esconder do mundo e se livrar do vento, como o casal que dorme a uns metros. Basta-lhe uns cobertores bem esticados debaixo de um alpendre. Frio? “Não! Já estou habituado.”

Referência: Público

Artigos relacionados