Estava um frio dos diabos. Dora Matos distribuía comida pelos sem-abrigo na Praça da Batalha, no centro do Porto. Outra voluntária reconheceu Christian Georgescu e, entusiasmada, pediu-lhe que lhes tirasse uma fotografia. Os olhares deles cruzaram-se.

Christian chegara à cidade havia três anos. Viajara três dias numa camioneta de Bucareste ao Porto. Três dias de ansiedade, nariz tapado, pupilas dilatadas, dores, náuseas, espirros, bocejos. Para trás ficava uma história criminal que prefere esquecer. Não se livrou da heroína, começou a misturá-la com base de cocaína, a usar “speedball”.

Naquela noite, 3 de Dezembro de 2013, já não dormia encostado ao mercado de São Sebastião, a umas centenas de metros daquela praça. Tão-pouco entrava em lojas para furtar o que lhe viesse às mãos, com o objectivo de despachar tudo na Ribeira. Oito meses disso bastaram-lhe. Aderira a um programa de substituição opiácea. Dormia na Casa da Rua, comunidade de inserção da Santa Casa da Misericórdia do Porto, na Rua Duque de Loulé.

“Cortei com quem andava a roubar”, comentara meses antes com o PÚBLICO. “Já para mim acabou. Roubar acabou. Foi uma vida que não gostei. Já para mim acabou.”

Naquela noite, Christian era um homem sorridente, elegante, perfumado. Celebrara 35 anos dias antes e estava orgulhoso de fazer parte da comissão organizadora do encontro “Uma vida como a arte: Existimos! Somos Pessoas!”, a primeira iniciativa do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo da Cidade do Porto (NPISA) a contar com a colaboração de pessoas com experiência de rua.

Nem sabem como ficaram ligados online. Supõem que seguiram uma sugestão da amiga comum. Quando se voltaram a ver, quatro meses depois, numa reunião d’ “Uma vida como a arte”, ele exclamou: “Olha a minha amiga do Facebook!” Ela sorriu. Apresentou-se como voluntária do grupo Arcanjos – amor ao próximo. Queria fazer mais do que distribuir comida.

Dias depois, lá estavam, desta feita numa iniciativa do Grupo de Acção Social do Porto, uma organização não-governamental vocacionada para a ajuda ao desenvolvimento, que também integra o NPISA, uma rede constituída pela Segurança Social e mais de 60 entidades formais e informais de apoio aos sem-abrigo. Convidadas a conversar com os voluntários para os ajudar a serem melhores voluntários, pessoas com experiência de rua queixavam-se dos atrasos, da qualidade da comida, do tratamento preferencial dado a este ou aquele.

“Eu, primeiro, só ouvi”, conta Christian. “Comecei a bater mal com o que estavam a dizer.” Resolveu tomar a palavra. Disse mais ou menos isto: “Gosto de vestir bem, gosto de cheirar bem, gosto de andar limpo. Tudo o que eu tenho vestido foi dado por voluntários. As minhas meias, as minhas cuecas, as minhas calças, a minha camisa, o meu casaco. Você está a dizer mal da comida. Você encontra comida melhor em casa? Não há. Na pensão? Não há. Onde está obrigado a ir? Às carrinhas. As pessoas que estão nas carrinhas deixam a casa delas, as famílias delas, a vida para estar ali, a entregar comida.”

Dora ouviu aquele homem de sotaque estranho, que lhe parecia tão simpático: “Tudo o que disse, a forma como disse, captou a minha atenção. Notei gratidão. Muitas vezes, na rua, não há isso. Parece que é uma obrigação dos voluntários estar ali.” Ele também estava a achar graça àquela mulher, três anos e dez meses mais nova. “Eu estava a ver Dora voluntária. Era agitada, faladora, brincalhona. Era um género de pessoa que eu gostava.”>

Calhou cruzarem-se pouco depois em casa de alguém. Ele acompanhou-a ao táxi. Trocaram números de telefone. No dia seguinte, ele ligou-lhe. E no seguinte. E no seguinte. E no seguinte. Ela emprestava-lhe os ouvidos, aconselhava-o. “Eu achava que ele tinha muita necessidade de falar”, diz ela. “De falar sem ser julgado”, esclarece. Foram tomar um café. “Ele dizia que eu era o anjo dele. Até me ofereceu uma asa.”, recorda ela. “Ainda és o meu anjo”, diz ele. “Eu estava a ver alguém que se importava comigo”, prossegue. “E precisavas disso. De alguém que lidasse contigo sem ser por obrigação.”

Houve mexerico. Dora não se esquece disso: “Esta ligação fazia confusão a toda a gente por eu ser voluntária e ele sem-abrigo.” Técnicas que, a título formal ou informal, o iam acompanhando disseram-lhe “que ele era muito sensível, que podia confundir a amizade, que lidava mal com a frustração”. Quando se sentia muito frustrado, cortava-se. Acontecia recair.

Christian sentia-se profundamente só. Fizera um grande amigo, o educador de pares Vítor Santos, da equipa de rua do Espaço Pessoa – Centro de Encontro e Apoio a Prostitutas e Prostitutos da Cidade do Porto. Conhecera-o em São Bento, a trocar seringas, a distribuir preservativos, a encaminhar toxicodependentes e trabalhadores do sexo. Fora ele quem o ajudara a sair da rua e a trocar a heroína pela metadona. Era “uma inspiração”. Como ele, Chris gostava de fazer o curso de Gestão de Associações de Utilizadores de Drogas e Trabalhadores Sexuais na Agência Piaget para o Desenvolvimento. Só que ele apareceu morto, uma noite, na Rua Escura, na Sé do Porto.

Afligia-se para encher as horas. Não podia ficar na Casa da Rua, a ler um livro ou a escrever num caderninho de linhas o que lhe vinha à cabeça, por mais chuvosos que fossem os dias. Às 9h tinham todos de estar porta fora. Só podiam voltar às 12h para almoçar. Uma vez saciados, tinham de tornar a sair. Ficavam lá fora até às 17h30, no Inverno, ou 19h, no Verão.

Ia à Biblioteca Municipal de São Lázaro, na Rua do Saco. Ia à praça da alimentação do centro Comercial Gran Plaza, na Rua Fernandes Tomás. Outros sem-abrigo paravam por lá. Livravam-se do frio e acediam à Internet. Às vezes, ao fim do dia, dava umas voltas a ver se alguém atirara para o lixo copos, pratos, candeeiros, livros, estatuetas, roupas, sapatos, qualquer coisa de jeito que pudesse vender na feira da Vandoma, nas Fontainhas, ao sábado de manhã. Sempre ganhava “para tabaco, café, alguma coisa doce”.

Esmagava-o a solidão. “Eu nunca pensei! Eu nunca pensei chegar a uma altura da minha vida em que só falaria com toxicodependentes, alcoólicos, mendigos, prostitutas, prostitutos, sem-abrigo”, comentou então com o PÚBLICO. O resto do mundo parecia-lhe interdito no que aos afectos dizia respeito.

Naquela época, estava ainda mais frágil. Sentia muito a falta de Vítor. Sentia ainda a dor da impossibilidade de uma paixão que tivera por uma estudante da Universidade Católica do Porto que fizera estágio na Casa da Rua. O irmão viera ao Porto averiguar a possibilidade de abrir um negócio com ele e fora embora zangado. Tornara a consumir drogas ilícitas.

“Minha cabeça naquela altura não trabalhava bem”, diz Christian, agora. E o que começava a sentir por Dora metia-lhe medo. “Não a conhecia bem, bem. Estava com medo de me apaixonar tanto por ela e ela dizer: vai-te embora. Depois, avançando na relação, vi a força dela.”

“Primeiro, era uma relação maternal”, lembra ela. “Eu sentia necessidade de o proteger. A certa altura, isso mudou, comecei a sentir entusiasmo por ele. Não sou de dúvidas. Se tenho dúvidas, acabo com elas. Acabei a relação que tinha.” Ao saber que ela pusera um ponto final no namoro, ele encheu-se de esperança. “Não é fácil estar ao lado da pessoa que se gosta e não dizer, não dar aquele carinho”; sublinha. Aproximaram-se mais ainda.

Quando se uniram, em volta deles tudo era estranheza. “Fui convidada a largar o voluntariado”, diz Dora. “Disseram-me que se queria envolver-me com o Chris devia largar o voluntariado. Não misturar as coisas.” Estava no último ano do curso de Educação Social. Parecia-lhe que havia quem estivesse a confundir os deveres de um técnico no exercício da sua profissão com os deveres de um voluntário. “Disse que não ia largar o Chris nem o voluntariado.” Mesmo no seu grupo sentiu necessidade de marcar posição: “O Chris é sem abrigo, mora na Casa da Rua, mas é meu namorado e tem de ser tratado como tal. Têm de o respeitar, mais nada. Eu não tenho vergonha do que ele é ou foi.”

A mãe torceu o nariz, mas a tia-avó, a mulher que a criou, a quem ela chama “mãe velhinha”, aceitou o namoro. Uma irmã de Dora já entrara nas drogas e saíra delas. “Ela gosta de pessoas que dão a volta”, enfatiza. “A desgraça que foi a vida dele! Ele não desistiu de procurar um futuro melhor. Ele veio do estrangeiro. Se não tivesse iniciativa, não tinha aprendido português, continuava a ir à Rua Escura comprar droga, continuava a roubar. Ele sempre me disse que queria sair da Casa da Rua, que queria deixar a metadona, que queria trabalhar.”

Já não consome metadona. Foi reduzindo a dose. Deixou de consumir em Maio de 2014. Agora só toma um analgésico para as dores de cabeça. Já não mora na Casa da Rua. Partilha um espaço com a namorada. “Voltar a ter casa!”, exclama. “Não sei se alguém pode ter palavras para explicar o que é isso. Ter uma cama, lençóis limpos, cheirosos. Não ter frio, não ouvir barulhos, não ter alguém a bater à porta e a dizer que está na hora.…. É uma felicidade.”

Emprego é que ainda não arranjou. “Ainda ontem tive um serviço”, diz ele. “Um grande senhor, uma maravilha de senhor, chama-me quando precisa. Ele faz mudanças, pequenas obras. Quando o cliente diz para levar ajudante, ele chama-me. Ontem estava a comentar com ele. Pegas em coisas de 20, 30, 40, 50, 60, 100 quilos e ganhas seis euros por hora. Seis euros!”

Está inscrito na Plataforma+Emprego, projecto do NPISA-Porto que procura sinergias com o mundo empresarial para integrar sem-abrigo no mercado laboral. E no centro de emprego. Regularizou a situação no território nacional. Falta-lhe um certificado de habilitações para pedir equivalência. A técnica que o acompanha aconselhou-o a inscrever-se numa escola para fazer reconhecimento, validação e certificação de competências.

O sonho de Christian, agora, é ajudar outras pessoas. O casal está a regularizar uma organização com o nome “Saber Compreender”. A ideia é recolher cobertores, produtos de higiene, águas, sumos, pães e algo para lhes pôr dentro, percorrer pontos críticos da cidade, usar os donativos como chaves para abrir as portas de quem está na rua. O objectivo final, explica ela, é “tirar da rua, acompanhar à Segurança Social e continuar a acompanhar depois de a pessoa ser alojada num albergue, numa pensão ou num quarto de casa”.

Christian quer retribuir. Foi um dos fundadores do movimento Um Vida como a Arte. Faz parte da CASO – Consumidores Associados Sobrevivem Organizados. Já fez o curso de Gestão de Associações de Utilizadores de Drogas e Trabalhadores Sexuais na Agência Piaget. Sexta-feira de manhã, apresentou o “Saber Compreender” na reunião do NPISA-Porto. “Amo minha namorada, amo meus amigos, amo o Porto, que me deu oportunidade de renascer”, remata.

 

Reportagem original: Público

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